sábado, 23 de março de 2013

O INCOMPLETO



A convite, por Carlos Eduardo Heinig.

          Eu vi que já passava da hora quando ela se encolheu e fechou o casaco. Tudo estava amarelado do lindo sol que fazia. Mas o inverno tornava o ar gelado e cortante. A nossa ideia de tomar chá ao ar livre com aquele frio foi extremamente insensata, eu sei.
          - Acho que o vento não deixará concluir-nos o programa.
          - É realmente uma pena, o chá está tão quentinho, ele desce limpando minha garganta. – comentou ela, desviando rapidamente o olhar.
          - Já são seis. Estamos aqui desde às quatro.
          - O tempo voa quando estamos perto de quem gostamos.
          Ela levantou os olhos e não entendeu se eu falava sério ou se estava brincando de alguma maneira. Decidiu entrar na brincadeira:
          - Com certeza. – falou-me rindo, de maneira debochada.
          - Com certeza. – disse eu, escondendo meu sentimento.
          - Preciso ir, rapaz.  Minha mãe foi trocar a roupa da cama, quando o móvel simplesmente desabou. Preciso encontrar antes da noite um marceneiro.
          - Conheço um que trabalha muito bem. Fez para mim uma maldita mesa de telefone que eu havia desistido há tempos de procurar nas lojas. Indicaram-me este homem e fiz a mobília com ele. Simplesmente, o acabamento é perfeito! Perto de páscoa, mandei reformar meus móveis de meu dormitório. Ficaram deslumbrantes, quer conhecer?
          - Ah, seu insolente! Quem você pensa que sou? Uma moça qualquer?
          - Não. Não. Não era isso que eu quis dizer...
          - Mas foi justamente o que entendi. Vou-me embora.
          - Espere. Tome este endereço. – pus em suas mãos. Ela sacara com força e com uma olhar pernicioso.
          - Pois bem. O chá estava ótimo. Obrigada pelo endereço. Passar bem. – Falou-me rispidamente.
          - Passar bem.
          Do alto de minha casa, vi o corpo saindo portão afora. Seu vestido era simples e suas atitudes providas de um ar requintado – Uma perfeita dama. Pois quando olhei de volta, estava ela adentrando o portão. Sorri, achando que a sorte era comigo.
          - Vim buscar meu batom. Esqueci-o sobre a mesa...
          - Pois muito bem. Deve de estar lá. Eu não passei pela mesa do chá. Fui direto ao segundo andar.
          - Pois aqui está!
          - Muito bom, moça.
          - Até mais ver.
          - Até mais ver.
          Servi-me de mais uma xícara de chá. Estava gélido. Travou minhas bochechas e minha língua. Larguei minha xícara e – num relance – olhei a que ela deixara sobre o guardanapo. E realmente constatei que se tratava de uma aliança, no fundo obscuro preenchido com chá preto. Tomei um bilhete e escrevi “aceito”. Pus a aliança em cima. Assim que buscasse haveria ela de achar meu bilhete.
          Mas a noite surgiu, os ares esfriaram ainda mais e minhas esperanças também. De forma que me deitei.
          “Será ela está ansiosa, esperando uma resposta minha? Ou acha que eu ainda não achei. Pois achei. Está entre meus dedos. Vou calçá-la.” – pensei.
          Aquela foi, talvez, a única noite em anos que dormi bem. Estava tão sorridente, tão ansioso por um bilhete vindo pela manhã... Despertou-me uma ânsia fortíssima em ler algo de Ovídio. Como “A arte de amar”... Mas o volume o havia emprestado a um amigo e vizinho, igualmente à procura de um verdadeiro amor. E de como conduzi-lo. Esqueci-me e dormi.
          Mexia fortemente a xícara com o café. Cortei-me uma fatia de bolo. E a cada mastigada eu pensava em Ivone. Tudo isso me parecia um clichê já saboreado por cada personagem de Shakespeare. Cada carta de Werther e cada soneto de Camões. Tanto se fala nessa repetição desenfreada nos livros, nos poemas, nas esperanças; embora, quando se vive – a condição é de um momento completamente inédito. De uma boa-agonia tão suprema, que lês tu Camões como qualquer existencialista, saboreias as letras como as de um livro recém-lançado.
          - Sr. Nelson?
          - Diga, Lucinda.
          - Acaso viste algo de anormal ontem, no chá?
          - Não, nada. Apenas as pessoas de costume. O de costume...
          - Pois a maldita Rosana deu fim em minha aliança. Recém-separada do marido, disse-me que o casamento é algo a esmo. Um ato louco. Uma bobagem. Todavia, gastei uma pequena fortuna no par de alianças que comprei. Meu marido trabalhou o ano passado inteiro embalando vaselina para pagar as prestações da peça. Se eu fosse o Sr., demitiria essa mulher. Acaso viste?
          - Não. Não a vi. Pode ter vindo na toalha embrulhada e quando aberta, para ser estendida sobre a mesa, caiu sobre a grama. Alguém a pisoteou e ela se ocultou. Assim que cortarmos a grama, peço ao jardineiro para procurar. Não deve ter ido muito longe. E quanto a Rosana, verei o que farei com ela.
          - Obrigada, Sr. Vicente.
          - Oh, disponha. – falei. Comi duas fatias de presunto e olhei para o resto da mesa, sabendo o quão certo seria que não dormiria mais uma noite.


23 de março de 2013. 

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