sexta-feira, 29 de junho de 2012

DEPOIS DO JANTAR, UM CIGARRO E...

DEPOIS DO JANTAR, UM CIGARRO E...
   
Assim que traguei aquele último cigarro, porque, dali em diante, pararia de fumar; fixei
o olhar para Clara que estava de joelhos plantando petúnias. Sentia a fumaça caminhar pelos meus pulmões e aquela sensação agradável do vício, aquele aporte que ela me dava. Era insubstituível até que Clara me chamou mais atenção que o próprio fumo. Espalhei a fumaça da frente do meu rosto e vi aquele rosto bronzeado, com os olhos azuis que me apaixonaram, atentos às mudas sendo matematicamente calculadas no canteiro. Eram as mudas supersônicas, assim como os sons são supersônicos, as mudas também o são. Elas são vistas e captadas apenas por olhares atenciosos que nem mesmo as outras mudas veem. A mulher que me negou como seu amor, quando éramos adolescentes agora era a minha esposa há tantos anos. E não vimos o tempo passar. Até que vi esta maçã do meu lado. Junto do cinzeiro. A maçã que me reconsertou. Que me fez viver novamente, a maçã que era apenas uma maçã. A maçã de casca retumbante e em desacordo com outras maçãs. A maçã escondida e disfarçada de maçã para que ninguém mais, além de mim a visse como ela realmente era: uma maçã e não um mero alimento.
     O lanche de Clara. O sabor de Clara, de pele levemente bronzeada e de uma beleza peculiar. O sabor da maçã enrustida. O sabor de Clara enrustida na maçã. O sabor de Clara e da maçã no mesmo pomo de mármore vermelho chamativo, do mesmo pomo de atração do mim por ela. Do mesmo pomo. Das petúnias rosa que nada me lembram os trópicos. Até que, por fim, Clara concluiu e limpou as mãos sujas de barro na blusa de flanela xadrez. E o vermelho da maçã se confundia com o vermelho do xadrez da blusa de minha mulher. Ela parecia orar no chão. Estava de joelhos assim como a maçã me implorava por sua vida vegetal.
     E Clara implorava pela maçã por si própria. Era o próprio desespero do próprio vermelho inconformado da maçã. A desenvoltura da maçã. O arder da maçã como um assoalho de madeira. Aqueles olhos azuis muito excelsos. Aqueles olhos de borboleta, tão azuis que eram contaminados por uma incrível aura cristalina do nada. Amava a cada dia a Clara. E aqueles olhos e aqueles fios de cabelo louro e desgrenhados. E tudo. Amava ela ao todo. E o cheiro de terra e o cheiro de cigarro que o meu estava se apagando no cinzeiro.  A fumaça subia ao azul do céu. Ao azul sinfônico e desacreditado do céu. Porque o azul é desacreditado como o vinho. E tem os demônios jubilosos desfilando pelo ar do monumento morto e jogado num terreno para a carne ser consumida pelo decompositor que nem sabe o nome do corpo que come. Assim como a maçã vai ser consumida pelo consumidor que vai ser consumido. E nada mais. Tudo termina num nada que foi começado num nada.
     Enquanto Clara mastigava a maçã, seu olhar foi-me convidativo para entrarmos em casa. Joguei o cigarro entre a folhagem para que ela não notasse e a segui segurando em seu ombro e beijei sua nuca. O silêncio já nos era tão terno, tão apaixonante que as palavras já nos faltavam. Assim como me faltava àquela maçã. Não. Aquela maçã me fazia mais falta que as palavras. Porque de Clara eu podia esperar os gestos, os sentimentos; da maçã, não.
     Dentro da casa, no quarto, em minhas leituras, eu podia ver Clara se despir para o banho para livrar-se dos grãos de terra em seu corpo bronzeado e lindo. Assim como o ar é feito de moléculas, o amor também delas é feito. Tem segmentos de moléculas de amor naquele banho. Podia escutar as gotículas de água batendo e escorrendo pelas curvas do seu corpo.
     A água que tanto fora inocente com Clara e que tanto a desgastou de menina inocente à mulher que hoje é. A mulher de carícias doces e cara de francesa que tinha. Acendi meu abajur contra o plástico branco onde ela tomava banho, e a luz projetada me fazia ver a sombra e as sinuosidades do seu corpo. O ardor com que tomava banho. O silêncio que ela fazia às águas. O silêncio. A maçã, da cozinha, que trouxe para o meu lado, a companhia do pomo enquanto estava só. Enquanto apenas via a sombra do meu amor.
     Quando ela saiu nua com o corpo ainda molhado, a desejei ardentemente e pus em meu colo a maçã desorientada. O vapor de água contra a luz do banheiro, a toalha felpuda que ela esfregava na pele; secando a umidade do corpo. E as moléculas da umidade do corpo. A umidade nos azulejos do banheiro. A umidade. A umidade é o enfraquecimento, ela é luz do farol das pirâmides. Assim seca, Clara vestiu um longo vestido alvo, a peça se encaixava lindamente em seu corpo bronzeado e punha toda a sua beleza em evidência. Os movimentos dela assim que saiu do banheiro e veio em minha direção pareciam sincronizados assim como o alfinete é sincronizado ao choro dos bebês na maternidade. Ela sentou no braço da poltrona do nosso quarto: um riso malicioso e segurei minha maçã com força, numa mão e a mão de Clara com a outra. Beijei-a fortemente na boca. É como se beija o ato do choro de uma maçã. A saliva quente tem de encostar-se à maçã. E deformá-la ao seu gosto. É imbuí-la ao seu encontro catastrófico e sem recurso.
     O amor ao corpo de Clara vestido no vestido branco, assim como o corpo da maçã se envolve no ar e se comprime ao experimento simples de viver. A sua graça ao vestido era atribuída pelo branco ao seu tom de pele. Ao seu desejo de pele. Ao seu desejo. Ao meu desejo. Ao meu medo. Medo de perdê-la. Fomos em direção à cozinha. Vi que Clara queria me fazer algo especial, preparar-me uma janta indescritível e à francesa. Olhei pela janela e via a dura e branca lua no céu negro francês. A cor da Lua era a cor do vestido de minha mulher. Era a cor. Era a cor da camisa que eu vestia. Dum branco gelo, totalmente discreto como me agradava. E segurei com forças a minha maçã. Enxuguei o suor da testa, aquela noite seria quente; seria a nossa noite. Os dedos lindos e pequenos dela cortarem algumas folhas verdes e ela espalhava na saladeira tudo de forma rítmica assim como Deus é rítmico. Deus. E, ao temperar com o amarelo limão siciliano, algumas gotas ficaram em seus dedos que ela lambeu sensualmente olhando para mim. Os cabelos ajuntados num coque, como um pomo, um pomo dourado. E numa delicadeza comum a ela. Ao nosso casamento. Ao nosso amor. Comum ao incomum. No sul da França, jantamos. Eu, Clara e a maçã ao lado do meu prato. E quase nada conversamos. Na verdade, foi isso que tanto almejamos ao vir para o interior, numa casa de campo. Que as palavras fossem desprezíveis. E que os sentimentos prevalecessem. Jantamos docemente. Sim, trocamos algumas palavras afetuosas e a maçã nos observava incólume ao nosso amor.  Desprezando nosso desejo, mendigando o silêncio preciso de antes. As controvérsias do nosso silêncio. Bebemos o que vinho que busquei na adega e era tão especial: um Bordeaux antigo, mas com ares novos. Um vinho adolescente e sóbrio sobre as palhas e jornal do inverno cotidiano. A razão do cotidiano. A indelével razão. A razão branca e nítida como aquela lua inocente e grande no céu. A razão inconformada consigo mesma, inconformada como é o trago do vinho romântico que bebemos. O vinho, em verdade, não foi bebido. Ele foi cultuado por nós. O vinho. Era uma entidade antiga que gerava respeito. A bebida agnóstica dos deuses desprovidos de Deus. A bebida que evaporava. Um sangue roxo e Clara. A indecifrável Clara. Dezoito anos juntos e nem se quer a morte das charadas, o porquê do seu sorriso misterioso. Porque o sorriso é mistério revelado por alguns ociosos, porque o sorriso é não-deus. É sorriso. As poucas palavras não faziam parte. Os não dizeres desprezíveis. Selecionados de dizeres permanentes e desprevenidos. Era Clara, era a falta de prédios. Era Clara. Era o vinho. Era a palmeira desfolhada e a Lua atrás. Tudo rezava, tudo tudo. Uma morte calma da tarde e o começo da noite. E a salada apetitosa. E o limão siciliano. O limão é um mago. O fruto do prazer e da discórdia assim como a maçã. E a maçã. Eu combinado com a maçã. Ela vermelha, nutrida; consciente; aparente e sem noção de mundo. Sem perdão. Era a maçã. Ela Clara. Era a casa pintada de branco e com janelas azuis.
     Levantei meu maço de cigarros, mas decidi não acender algum. Porque o cigarro é a lei. E o cigarro é o produto do superior. É o produto do riso e do medo. Porque é cigarro.
     De modo que o papel absorve água, absorvo Clara. Inocência e indecência, incoerência até o nada mais. Até não poder dizer. Até questionar. Até. É inédito o nosso amor... frase lânguida. Choro perverso. Inconsistente. E a secura do ar me retém no Deus supersônico que nesse momento me é a maçã. Desejo a maçã como  não desejo Deus e Clara. Deus que é Deus. O retumbante Deus. Infelicidade. E o último gole de vinho se foi... bebemos juntos; se fôssemos sincronizados, não o faríamos. Mas nosso amor nos poupou. E Clara no seu vestido.E a maçã na sua casca e Deus no seu esconderijo onde impera a sua discrepância. A discrepância de morder o pomo e não sentir nada. O ar vazio do pomo. A indelicadeza. O torpor. A noite.
     Clara fumou um cigarro, tentando ficar longe de mim. Mas o cheiro me vinha como um exército de anjos de palha, de palhas, de humanos. Segurava o cigarro com imponência e a fumaça subia vagarosa. E segurei inteiramente a maçã, como quem segura a Deus. E a olhei de novo. E cada vez que, olhava a mulher se parecia mais com ninguém que conhecia e minha paixão ia aumentando, proporcional aumentava a provocação. A intensidade. E tinha medo de envelhecer para ela. E tinha medo. E tinha medo de me ser para ela, no meio do nada francês. Embaixo da lua francesa. Da lua. A supremacia da Lua francesa. E Clara. E ela. E eu. Vi os olhares estafados dela, as flores plantadas lhe cansaram. Assim como Deus se cansou no sétimo dia, o humano se cansa todo dia. Seu olhar exaurido e suave. Mandei-a dormir. Ela não recusou a proposta. Disse-lhe que eu iria depois, que ainda não estava cansado. Nem uma linha escrevera naquele dia. O cansaço pela escrita era pior que o físico. Era o cansaço pela maçã. Era o riso pela maçã. Era a defesa da maçã. Clara se despiu e deitou na cama. Eu a aconcheguei. Pus os lençóis por cima dela, apaguei as luzes e saí do quarto. Os meus passos eram leves. O seu sono era leve igual a Deus. Sempre achei que Deus fosse tão leve e tão discreto que a humanidade seria incapaz de escutá-lo. Que a humanidade é surda? Não, que ela finge não escutar. A maçã finge não escutar, tudo finge não escutar. E o não escutar é um hábito, é uma crença. É não escutar.
     E eu escutava a respiração de Clara dormindo. Segurava a maçã com seu caráter desmerecido. Com sua alma imprópria. Parecia-se com um anjo dormindo: com os grandes e azuis olhos fechados. E o corpo, e o corpo somente respirando. Quando se dorme, se fica surdo. Quando se morre se fica surdo. E no escutar Clara dormindo me senti surdo dos átomos. Até que parou em frente à minha casa uma grande Mercedes-Benz amarela-creme. Era imponente e grandiosa. A buzina tocou e uma luz forte do farol entrou justamente na sala onde eu estava lendo. Aquela luz me dizia algo. Larguei violentamente a maçã e ajuntei algumas coisas minhas que alguém viera me receber. Fui ao quarto de Clara e senti remorso, mas tinha medo de vê-la envelhecer. Assim como o ouro também envelhece e vai morrendo aos poucos. A morte é a surdez. É a perdição do humanismo.
     Abri a porta do carro e nada me surpreendeu.
     - Françoise? – ela vestia uma jaqueta de couro caramelo um pouco mais escura que a cor do carro e um lenço de seda laranja no pescoço.
     - Entre logo!
     Relutei. Meus olhos se condensaram lágrimas. Senti o tato de Clara. Entrei no carro. Beijei Françoise fortemente na boca. A francesa ligou o motor e o veículo entrou em movimento. Foi se desleixando. E Françoise me olhava com imensa pressa. Virei e vi a casa alva de Clara com as janelas azuis. Passei as mãos nos cabelos da francesa. Aqueles cabelos revoltos e desgrenhados como os de Clara. O carro Mercedes começava a se movimentar. E eu olhava a casa de Clara agora.
     - Eu te amo.
     - Eu também, Françoise.
     - Sei que não.
     - Amo sim.
     - Chega de frescuras!
     - Sim, chega! – falei com uma lágrima escorrendo rosto abaixo. Olhei o lenço de Françoise de fundo alaranjado com limões sicilianos estampados e até esqueci de minha maçã. Eu estava surdo como a maçã e como Deus. Surdo como algo. Beijei novamente a francesa e tentei me esquecer do rosto de Clara. É como esquecer Deus. Dei ainda mais um beijo delicioso em Françoise e acendi um cigarro, aquele provavelmente seria o último.

19 – 06 - 2012

domingo, 24 de junho de 2012

AS TRINCHEIRAS DE SIZÍGIA


INÍCIO: 04 DESETEMBRO DE 2011

I. O GRUPO

            Assim que as luzes dos postes começaram a se acender, a tarde foi descendo e dando lugar à noite, um grupo com mais de cem homens vieram andando pelas ruas de frente pro mar. Eles andavam como se fosse uma marcha incessante, da qual não pudessem parar. Olhavam fixamente para frente e piscavam todos em conjunto. Iam pisoteando as ervas daninhas que cresciam na beira do asfalto, entre um paralelepípedo e outro. Todas as casas de beira mar tiveram gente saindo para ver o que era aquilo. Os mais pobres com tochas na mão, os mais ricos com lampiões e lanternas à pilha, mas todos com ambição de saber o porquê de estarem marchando tão sincronizadamente e tão seriamente...
            A noite tomou posse da tarde de uma vez. Os homens acenderam todos ao mesmo tempo tochas com labaredas altas e incandescentes. Tudo aquilo se parecia com uma procissão, mas não havia hinos sendo entoados, nem rezas, nem palavras, somente os murmúrios dos sapatos brancos engraxados caminhando pelas ruas escuras. As ondas do mar pareciam cumprimentar os integrantes daquele outro tipo de onda. E cada metro que eles caminhavam, pessoas vinham apreciar sem saber a resposta de todo aquele espalhafato.
            Um dos homens se virou para aquela plateia, deu um sorriso irônico e prosseguiu seu destino. Virou o rosto de perfil novamente. As mulheres com vestido chita começaram a cantar alto, deram gritos, sorrisos, acenavam para os homens sóbrios e alvos, uma mancha alva no meio do cinza e do negro. De modo que um cachorro atravessou a rua   correndo na frente deles. Ele ficou desesperado, pensando que ia ser atropelado; mas não! Eles pararam. Todos olhavam a mesma direção: o insano cachorrinho que se atreveu a atravessar o caminho.
            A dona do botequim interveio, chamou aquele povo todo para beber cerveja, só que todos já haviam passado por lá. Ela se frustrou por perder tamanha clientela. Foi a sua maior perda até então. Entrou e acendeu todos os lampiões, nunca era demais, caso eles voltassem.
            Quem eram aqueles homens? Todos na rua de frente pro mar se perguntavam a mesma coisa. Eles nunca viram aquelas caras por ali. Eram diferentes, não eram conhecidos, tinham rostos europeus... Não portugueses, talvez escandinavos ou dos Bálcãs... Era um povo diferente. Será marinheiros que atracaram no porto e vieram desfilar na rua? Não, porque nenhum navio atracara no porto aquele dia. Aquilo acabou tornando-se um mistério. Todos queria saber o que um bando de marmanjos faziam andando pela rua...
             Até que então, no final da fila imensa, veio um senhor barbudo, com uma roupa preta chamativa em meio a todo aquele branco que falava algumas coisas para o povo que tudo assistia. Foi então que a dona do boteco perguntou...
            - Meu bom senhor, quem são esses homens?
            - Quem são?
            - Sim.
            - São homens. – e saiu andando calmamente, meio cambaleante, mas seguia perfeitamente os outros.
            A dona do boteco, novamente, não sabia o que fazer. Depois de tamanha resposta foi cuidar dos seus afazeres. Saiu sem entender.
            Já o dono do açougue não se contentou em saber aquilo, surpreendeu o velho novamente:
            - Que são homens já sabemos, queremos saber o que fazem aqui?
            - Então por que perguntam que são homens?
            - Mas o que fazem aqui?
            - São homens em marcha, em pró...
            - Em pró de quê?
            - Em pró...
            - Ahn?
            - Estamos em guerra.
            - Em guerra?
            - Sim. Não vê que eles estão todos fardados?
            - Não senhor. Eles vestem terno e sapato branco e não farda e coturno.
            - Pois então. Estão devidamente fardados.
            - Mas, contra quem é a guerra?
            - Isso não lhe importa...


II. CÉSAR

Querida Mamãe,

            Fomos chamados para essa guerra, mas não sabemos ainda com quem vamos lutar. Segundo nosso capitão, trata-se de um inimigo muito poderoso. Espero que estejas orgulhosa de mim. Quero levar muitas medalhas e mostrar-lhe o quanto me esforcei por aqui. Acho que por enquanto é só...
Beijos,
César.

            O grupo se instalou na beira da praia, junto da areia. Toda a população esperava ansiosa pelo inimigo, mas nada aparecia. A não ser um frio endemoniado e alguns insetos perdidos no inverno. As ondas escuras batiam na areia e voltavam  para o oceano e os soldados estavam todos a postos, esperando que o pior acontecesse; mas apenas a lua alumiava os rostos já cansados de tanto caminhar pela rua.
            - Senhores?
            - Sim, senhor!
            - Estamos esperando que o pior aconteça. Quero que a fileira da frente pegue as pás e comece e cavar uma trincheira não muito funda, mas também não falsa nesta areia seca. – falou aquele velho vestido de preto.
            A população olhava com pena. Eles escavavam e esgotavam quase por completo suas forças físicas. Um homem veio perto com uma pá e decidiu ajudá-los.
            - Não queremos a sua ajuda. Eles estão aqui para isso.
            - Não se preocupe senhor. Só quero ajudar os seus soldados. Eles estão muito cansados.
            - Eles não precisam da sua ajuda. Vocês precisam dele?
            - Não senhor!
            - Estás vendo. Sua ajuda é inútil. Estamos, nós, querendo ajudá-lo.
            A noite se aprofundou de tal maneira, que o homem recuou e foi se embora com a pá. A população foi se esvaindo, nada mais  era novidade. Só que todos foram dormir sem saber do que se tratava.
            Alguém da cidade se levantou e olhou para a praia. Lá estavam aqueles humanos escavando eternamente a areia. Dois ou três já tinham desmaiado. Outros tantos estavam por vir da mesma maneira. Levantavam aquela areia com  pás de modo que apenas derrubavam para o outro lado.
            - Vamos, vamos!Precisamos abrir essa trincheira antes que o inimigo chegue.
            - Sim senhor. – repetiam em coro. Não sabiam o que faziam, mas faziam com perfeita obediência. As ondas estavam mais calmas que anteriormente. Iam se suavizando, à medida que a noite tomou posse de tudo. Aí então, somente as sobras daqueles fiéis soldados puderam ser vistas. Somente o som dos gritos do comandante.


III. REYNALDO

Meu amor,
            Ficamos toda a escuridão da noite cavando uma trincheira. Em meio a madrugada começou a chover e me molhei até os ossos. Ainda não sei bem porque estou aqui fazendo isso, mas posso lhe afirmar que o inimigo será vencido. Minha doce Gabriela, eu lhe asseguro, você me terá como herói. Apesar de eu estar cansado e com muita fome (são dez horas da noite e ainda não tomei o café da manhã), sinto-me poderoso e guarnecido de muita força interior.

Beijos apaixonados, Rey.

            A população voltou as suas tarefas habituais. Não tinha mais um pingo de preocupação em manter aqueles soldados lá na areia praiana. Tudo aquilo era muito estranho, mas tinha de ser aceito pela população. Eles apenas balançavam a cabeça ao ver todos aqueles soldados, todos virados para o sol.
            - Debaixo daquelas fardas, quero dizer, daqueles ternos devem estar fervendo aquelas carnes. – comentou um pedreiro indo ao serviço.
            - Nem me fala. Eu não conseguiria ficar lá. – replicou o dono do boteco.
            Todos os soldados estavam numa fila, expostos violentamente ao sol, olhando para o mar. Esperavam ansiosamente por alguma coisa... Já  o comandante, ele estava debaixo de um coqueiro coberto de mapas. Fazia círculos com um velho compasso enferrujado e definia traços longos. Coçava a cabeça e voltava a olhar a posição dos preciosos soldados.
            - Comandante?
            O dono do boteco se enfezou.
            - Sim.
            - Tire os seus soldados do sol, não está vendo como eles passam mal?
            Quando olharam, vários já estavam desmaiados ou delirando. Os soldados ao lado dos moribundos queriam ajudar, mas tinham medo de serem repreendidos.
            - Soldados. Quero que descansem um pouco. Está muito quente e evidentemente vocês podem tomar água quando quiserem.
            O dono do bar ficou surpreso. Foi o primeiro gesto de bondade que ele viu do comandante... Os soldados foram correndo e cambaleando até os vasilhames de água. Estavam morrendo de sede.


IV. PAULO

Minha amada Heloísa,

            Escrevo-lhe porque tive um curto tempo de descanso, por isso perdoe algum erro ortográfico ou de acentuação. Segundo nosso comandante, estamos recebendo um inimigo feroz e cruel. Tão cruel que montamos guarda a noite toda, não dormimos ainda, desde que partimos. Mas ainda me sinto forte para combater qualquer coisa que nos enfrentar. Sinto que tudo logo chegará ao fim.

De quem tanto te ama, Paulinho.

            Anoiteceu novamente chovendo, com todos os homens de pé olhando para o mar. Parou na frente do boteco um carro cinza escuro. Saiu um homem de jaleco branco com um terno (também branco) pendurado num cabide. Ele tirou um caixote pequeno e fechou o porta-malas do carro.
            - O que o senhor faz aqui? – perguntou um dos moradores.
            - Meu nome é Rodolfo. Eu sou psiquiatra.
            Ele tinha mesmo jeito de médico de louco. Vestia uma camisa toda amassada por baixo do jaleco e já fazia alguns anos que não trocava de óculos, pois os seus estavam manchados e descascados pelo tempo.
            - Aposto que veio atrás daqueles homens todos...
            - Sim, o senhor os viu?
            - Vi sim. Estão lá na praia. Mas... que mal eu lhe pergunte: pra quê o terno branco e o caixote?
            - Vou vesti-lo e botar as medalhas.
            Ele abriu o caixote e nele, mais de trinta medalhas.
            - O senhor não se importa se eu olhar, não?
            - Claro que não. Vou usar o banheiro do bar ali e vocês podem olhar as medalhas a vontade enquanto visto o terno...
            - Vá lá que o dono do bar é muito generoso.
            Ele veio vestido com o terno branco e começou a pendurar as dezenas de medalhas no ombro e no peito. Começou a caminhar até a praia e ser seguidos pela população curiosa ali presente.
            - Senhor comandante. – Rodolfo tinha jeito para conquistar o tal comandante. – O inimigo se rendeu. O senhor já pode recolher o seus homens e me seguir...
            - Como é o nome de vossa excelência?
            - Eu sou o General Barbosa. Quero que me acompanhe.
            - Sim. Precisamos comemorar...
            Lá se foram os loucos caminhando de volta, atrás do carro, gritando vitória, sem mesmo saber por quê. Tinham senso de vitória. Iam para nunca mais voltar.


V. PAULO

Luciana, meu amor,

Dever cumprido!


Te amo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O CANTO DA PAREDE

E nada mais se dispõe aos olhos murchos,
Nem semblantes, nem preciosismos, nem podridão:
A única marcha ao louco desejo do século,
Ao impiedoso sistema de cruzes e peixes,
Ao criminoso sorriso dos sinos,
Ao impaciente choro das avencas nos vasos
Em beiradas e apogeus demográficos.

Paciência aos camundongos excomungados,
Aos retratos de opções e fagulhas:
Pazes e desejos de violentos movimentos de uma pena,
E exócrinas almas desprezíveis, em movimento;
Em coro sublimes pelos céus de névoa e ciúmes.

Florada a muda do canteiro, indisposto;
E musgo escorrido sobre as arcadas e devaneios,
Anárquicas rosas murchas em cima da janela
E um rim pulsando, numa caixa de isopor.

20 - 06 - 2012

sábado, 9 de junho de 2012

A SAMAMBAIA DO MUSEU

 

A loira do boteco... sentou.

Os lábios se apertaram e ela bebeu gim.

O gim dos lábios do gim dos lábios: criatura.

E terra, e molhes, e mar. E criatura.

E luz. E lampião.

A loira linda do boteco... conhecia.

Seu estrabismo louco, ela me deixou.

Eu fui deixado pela estrábica:

- Que calor, não?

- Hein?

- Que calor?

- É !

- É !

Meu copo caiu no balcão,

O coração pulsava,

O semblante tremia.


06 - 06 - 2012

segunda-feira, 4 de junho de 2012

ANAGRAMAS

-   - Quero que espere!
    - Sim?
    - Espera no topo da escada que estou subindo.
    - Tá bom, porra.
    - Não vai me falar nada?
    - Não.
    -...?
    - !
    Ela me parou no vão de cima da escada para que pudesse esperá-la no topo. Estranhei os olhos dela por alguns segundos, parecia querer me dar uma má notícia. Talvez meu desespero supersticioso.
    - Pronto.
    - Quê?
    - Estou aqui.
    - Sim.
    - Sim.
    - O que tu qué?
    - Seja mais gentil...
    E olhei fora de uma janela embaçada. O dia chuvoso conspirava alguma forma de fenômeno natural, um frio... um riso meu... um anagrama com o meu nome pensei em fazer. Mas um anagrama meu ficaria muito fácil... gostaria com um nome mais complexo, mais distante de mim. Queria tanto que meu nome tivesse b. Virei o rosto de novo e foquei no rosto de Isabel.
    - Parei de escrever por uns instantes, meu rapaz.
    - É?
    - Sim. É minha grande preocupação ficar muito tempo sem escrever.
    Contornávamos um corredor longo e absurdo. Um corredor com assoalhos largos de madeira já gasta e paredes pintadas com uma cor pálida e descrente em si mesma.
    - Acho também que parei de escrever...
    - É?
    - Pois é,
    - Mal posso esperar. – falou-me comendo uma maçã, já quase totalmente sem carne.
    - Pra quê?
    - Para me ser de novo.
    - Ser de novo?
    - Ser?
    - Sim, esgotar um pouco do si.
    - Pode ser.
    Caminhamos e os dois olhamos para uma moça de tailleur que nos ultrapassou e entrou numa saleta de escritório mais a frente. Dei-lhe um sorriso.
    - Isabel...
    - Por que escrever?
    - Por quê?
    - Sim, por quê?
    - Não sei. – falou-me, lavando as mãos na pia.
    - Escrever pode ser? Pode desalmar?
    - Eu não sei.
    - Eu não sei.
    -???
    - Talvez.
    - Acho que sim...
    Ela esfregava o sabonete entre os dedos para conversar comigo, a espuma que se formava era rala e tinha um cheiro agradável de erva-doce. Mas eu me preocupava a olhar Isabel. E sim, pensar num anagrama, um anagrama com o seu nome. Por que não? Talvez ficasse bem encaixado. Talvez o nome dela fosse mais privilegiado que o meu. Talvez.
    - E Isabel: se, escrevendo, eu te perder?
    - Por que isso?
    - A perda poética.
    - Acho que sim também. Dependa da leitura labial.
    - O que isso tem a ver?
    - Você não sabe o que os lábios nos fazem?
    Pasmei falsamente, pois já sabia disso e adotava como um dogma.
    - Não.
    - Sei. Poucos sabem. Mas... o que tu escreves?
    - De tudo um pouco. Mais pranto que qualquer outra coisa.
    - Pensei nisso. Então a leitura de lábios some com teu pranto?
    - Sim. E tu, o que enxugas?
    - Também um pouco de tudo. – e enxugava os dedos com o papel toalha úmidos, com a velha mania de passar delicadamente entre os dedos. – inclusive meus dedos...
    Acho que ela havia notado que eu havia notado na obsessão em manter os dedos limpos.
    - Os dedos também fazem parte de nós, não?
    - Mas são efêmeros...
    - Porque caem lentamente quando se escreve...
    Mirei fixamente nela. Os olhos brancos, pequenos... pupilas dilatadas e pele levemente morena. Um riso meio debochado no rosto, mas causticamente crítica a si mesma. Uma revolta meio juvenil demais, para sua idade mental elevada.
    O cabelo liso e reto sobre os ombros. Um diagnóstico certo de que cairiam seus dedos nas teclas dos instrumentos de escrita. E continuei pensando nos anagramas relacionados ao nome dela: I – S – A – B – E – L, ISABEL.
    - Meu corpo inteiro cai. Você viu que eu tenho que fazer a biografia do meu pai.
    - E...
    - Odeio escrever biografias. Parece que quem escreve biografias fica num segundo plano... afastado do riso e das boas críticas.
    - Mas você tem material poético o suficiente em casa... escreve logo.
    - O autor é esquecido, mas a obra deve ser mantida!
    - Claro que não, rapaz! Somente a obra deve ser lembrada.
    - O autor.
    - Ah, que o diabo o carregue. – ela me deixou no mesmo lugar que começamos a conversa: o topo da escada de madeira. Nós dois seguramos no corrimão.
    -???
    -... .
    Ela desceu rindo ironicamente. Eu olhei para o chão, vi um pó denso e transparente sobre as tábuas largas e então, cheguei a um bom anagrama: B – E – L – A  . As demais letras poderiam ser esquecidas. Somente estas me valiam. E fui andando e desenhando com os pés no chão as letras do anagrama. Até a janela embaçada onde meus olhos viram a torre da igreja do lado. E voltou-me: BELA. ISABEL BELA.



04 de junho de 2012