domingo, 24 de junho de 2012

AS TRINCHEIRAS DE SIZÍGIA


INÍCIO: 04 DESETEMBRO DE 2011

I. O GRUPO

            Assim que as luzes dos postes começaram a se acender, a tarde foi descendo e dando lugar à noite, um grupo com mais de cem homens vieram andando pelas ruas de frente pro mar. Eles andavam como se fosse uma marcha incessante, da qual não pudessem parar. Olhavam fixamente para frente e piscavam todos em conjunto. Iam pisoteando as ervas daninhas que cresciam na beira do asfalto, entre um paralelepípedo e outro. Todas as casas de beira mar tiveram gente saindo para ver o que era aquilo. Os mais pobres com tochas na mão, os mais ricos com lampiões e lanternas à pilha, mas todos com ambição de saber o porquê de estarem marchando tão sincronizadamente e tão seriamente...
            A noite tomou posse da tarde de uma vez. Os homens acenderam todos ao mesmo tempo tochas com labaredas altas e incandescentes. Tudo aquilo se parecia com uma procissão, mas não havia hinos sendo entoados, nem rezas, nem palavras, somente os murmúrios dos sapatos brancos engraxados caminhando pelas ruas escuras. As ondas do mar pareciam cumprimentar os integrantes daquele outro tipo de onda. E cada metro que eles caminhavam, pessoas vinham apreciar sem saber a resposta de todo aquele espalhafato.
            Um dos homens se virou para aquela plateia, deu um sorriso irônico e prosseguiu seu destino. Virou o rosto de perfil novamente. As mulheres com vestido chita começaram a cantar alto, deram gritos, sorrisos, acenavam para os homens sóbrios e alvos, uma mancha alva no meio do cinza e do negro. De modo que um cachorro atravessou a rua   correndo na frente deles. Ele ficou desesperado, pensando que ia ser atropelado; mas não! Eles pararam. Todos olhavam a mesma direção: o insano cachorrinho que se atreveu a atravessar o caminho.
            A dona do botequim interveio, chamou aquele povo todo para beber cerveja, só que todos já haviam passado por lá. Ela se frustrou por perder tamanha clientela. Foi a sua maior perda até então. Entrou e acendeu todos os lampiões, nunca era demais, caso eles voltassem.
            Quem eram aqueles homens? Todos na rua de frente pro mar se perguntavam a mesma coisa. Eles nunca viram aquelas caras por ali. Eram diferentes, não eram conhecidos, tinham rostos europeus... Não portugueses, talvez escandinavos ou dos Bálcãs... Era um povo diferente. Será marinheiros que atracaram no porto e vieram desfilar na rua? Não, porque nenhum navio atracara no porto aquele dia. Aquilo acabou tornando-se um mistério. Todos queria saber o que um bando de marmanjos faziam andando pela rua...
             Até que então, no final da fila imensa, veio um senhor barbudo, com uma roupa preta chamativa em meio a todo aquele branco que falava algumas coisas para o povo que tudo assistia. Foi então que a dona do boteco perguntou...
            - Meu bom senhor, quem são esses homens?
            - Quem são?
            - Sim.
            - São homens. – e saiu andando calmamente, meio cambaleante, mas seguia perfeitamente os outros.
            A dona do boteco, novamente, não sabia o que fazer. Depois de tamanha resposta foi cuidar dos seus afazeres. Saiu sem entender.
            Já o dono do açougue não se contentou em saber aquilo, surpreendeu o velho novamente:
            - Que são homens já sabemos, queremos saber o que fazem aqui?
            - Então por que perguntam que são homens?
            - Mas o que fazem aqui?
            - São homens em marcha, em pró...
            - Em pró de quê?
            - Em pró...
            - Ahn?
            - Estamos em guerra.
            - Em guerra?
            - Sim. Não vê que eles estão todos fardados?
            - Não senhor. Eles vestem terno e sapato branco e não farda e coturno.
            - Pois então. Estão devidamente fardados.
            - Mas, contra quem é a guerra?
            - Isso não lhe importa...


II. CÉSAR

Querida Mamãe,

            Fomos chamados para essa guerra, mas não sabemos ainda com quem vamos lutar. Segundo nosso capitão, trata-se de um inimigo muito poderoso. Espero que estejas orgulhosa de mim. Quero levar muitas medalhas e mostrar-lhe o quanto me esforcei por aqui. Acho que por enquanto é só...
Beijos,
César.

            O grupo se instalou na beira da praia, junto da areia. Toda a população esperava ansiosa pelo inimigo, mas nada aparecia. A não ser um frio endemoniado e alguns insetos perdidos no inverno. As ondas escuras batiam na areia e voltavam  para o oceano e os soldados estavam todos a postos, esperando que o pior acontecesse; mas apenas a lua alumiava os rostos já cansados de tanto caminhar pela rua.
            - Senhores?
            - Sim, senhor!
            - Estamos esperando que o pior aconteça. Quero que a fileira da frente pegue as pás e comece e cavar uma trincheira não muito funda, mas também não falsa nesta areia seca. – falou aquele velho vestido de preto.
            A população olhava com pena. Eles escavavam e esgotavam quase por completo suas forças físicas. Um homem veio perto com uma pá e decidiu ajudá-los.
            - Não queremos a sua ajuda. Eles estão aqui para isso.
            - Não se preocupe senhor. Só quero ajudar os seus soldados. Eles estão muito cansados.
            - Eles não precisam da sua ajuda. Vocês precisam dele?
            - Não senhor!
            - Estás vendo. Sua ajuda é inútil. Estamos, nós, querendo ajudá-lo.
            A noite se aprofundou de tal maneira, que o homem recuou e foi se embora com a pá. A população foi se esvaindo, nada mais  era novidade. Só que todos foram dormir sem saber do que se tratava.
            Alguém da cidade se levantou e olhou para a praia. Lá estavam aqueles humanos escavando eternamente a areia. Dois ou três já tinham desmaiado. Outros tantos estavam por vir da mesma maneira. Levantavam aquela areia com  pás de modo que apenas derrubavam para o outro lado.
            - Vamos, vamos!Precisamos abrir essa trincheira antes que o inimigo chegue.
            - Sim senhor. – repetiam em coro. Não sabiam o que faziam, mas faziam com perfeita obediência. As ondas estavam mais calmas que anteriormente. Iam se suavizando, à medida que a noite tomou posse de tudo. Aí então, somente as sobras daqueles fiéis soldados puderam ser vistas. Somente o som dos gritos do comandante.


III. REYNALDO

Meu amor,
            Ficamos toda a escuridão da noite cavando uma trincheira. Em meio a madrugada começou a chover e me molhei até os ossos. Ainda não sei bem porque estou aqui fazendo isso, mas posso lhe afirmar que o inimigo será vencido. Minha doce Gabriela, eu lhe asseguro, você me terá como herói. Apesar de eu estar cansado e com muita fome (são dez horas da noite e ainda não tomei o café da manhã), sinto-me poderoso e guarnecido de muita força interior.

Beijos apaixonados, Rey.

            A população voltou as suas tarefas habituais. Não tinha mais um pingo de preocupação em manter aqueles soldados lá na areia praiana. Tudo aquilo era muito estranho, mas tinha de ser aceito pela população. Eles apenas balançavam a cabeça ao ver todos aqueles soldados, todos virados para o sol.
            - Debaixo daquelas fardas, quero dizer, daqueles ternos devem estar fervendo aquelas carnes. – comentou um pedreiro indo ao serviço.
            - Nem me fala. Eu não conseguiria ficar lá. – replicou o dono do boteco.
            Todos os soldados estavam numa fila, expostos violentamente ao sol, olhando para o mar. Esperavam ansiosamente por alguma coisa... Já  o comandante, ele estava debaixo de um coqueiro coberto de mapas. Fazia círculos com um velho compasso enferrujado e definia traços longos. Coçava a cabeça e voltava a olhar a posição dos preciosos soldados.
            - Comandante?
            O dono do boteco se enfezou.
            - Sim.
            - Tire os seus soldados do sol, não está vendo como eles passam mal?
            Quando olharam, vários já estavam desmaiados ou delirando. Os soldados ao lado dos moribundos queriam ajudar, mas tinham medo de serem repreendidos.
            - Soldados. Quero que descansem um pouco. Está muito quente e evidentemente vocês podem tomar água quando quiserem.
            O dono do bar ficou surpreso. Foi o primeiro gesto de bondade que ele viu do comandante... Os soldados foram correndo e cambaleando até os vasilhames de água. Estavam morrendo de sede.


IV. PAULO

Minha amada Heloísa,

            Escrevo-lhe porque tive um curto tempo de descanso, por isso perdoe algum erro ortográfico ou de acentuação. Segundo nosso comandante, estamos recebendo um inimigo feroz e cruel. Tão cruel que montamos guarda a noite toda, não dormimos ainda, desde que partimos. Mas ainda me sinto forte para combater qualquer coisa que nos enfrentar. Sinto que tudo logo chegará ao fim.

De quem tanto te ama, Paulinho.

            Anoiteceu novamente chovendo, com todos os homens de pé olhando para o mar. Parou na frente do boteco um carro cinza escuro. Saiu um homem de jaleco branco com um terno (também branco) pendurado num cabide. Ele tirou um caixote pequeno e fechou o porta-malas do carro.
            - O que o senhor faz aqui? – perguntou um dos moradores.
            - Meu nome é Rodolfo. Eu sou psiquiatra.
            Ele tinha mesmo jeito de médico de louco. Vestia uma camisa toda amassada por baixo do jaleco e já fazia alguns anos que não trocava de óculos, pois os seus estavam manchados e descascados pelo tempo.
            - Aposto que veio atrás daqueles homens todos...
            - Sim, o senhor os viu?
            - Vi sim. Estão lá na praia. Mas... que mal eu lhe pergunte: pra quê o terno branco e o caixote?
            - Vou vesti-lo e botar as medalhas.
            Ele abriu o caixote e nele, mais de trinta medalhas.
            - O senhor não se importa se eu olhar, não?
            - Claro que não. Vou usar o banheiro do bar ali e vocês podem olhar as medalhas a vontade enquanto visto o terno...
            - Vá lá que o dono do bar é muito generoso.
            Ele veio vestido com o terno branco e começou a pendurar as dezenas de medalhas no ombro e no peito. Começou a caminhar até a praia e ser seguidos pela população curiosa ali presente.
            - Senhor comandante. – Rodolfo tinha jeito para conquistar o tal comandante. – O inimigo se rendeu. O senhor já pode recolher o seus homens e me seguir...
            - Como é o nome de vossa excelência?
            - Eu sou o General Barbosa. Quero que me acompanhe.
            - Sim. Precisamos comemorar...
            Lá se foram os loucos caminhando de volta, atrás do carro, gritando vitória, sem mesmo saber por quê. Tinham senso de vitória. Iam para nunca mais voltar.


V. PAULO

Luciana, meu amor,

Dever cumprido!


Te amo.

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