sexta-feira, 29 de junho de 2012

DEPOIS DO JANTAR, UM CIGARRO E...

DEPOIS DO JANTAR, UM CIGARRO E...
   
Assim que traguei aquele último cigarro, porque, dali em diante, pararia de fumar; fixei
o olhar para Clara que estava de joelhos plantando petúnias. Sentia a fumaça caminhar pelos meus pulmões e aquela sensação agradável do vício, aquele aporte que ela me dava. Era insubstituível até que Clara me chamou mais atenção que o próprio fumo. Espalhei a fumaça da frente do meu rosto e vi aquele rosto bronzeado, com os olhos azuis que me apaixonaram, atentos às mudas sendo matematicamente calculadas no canteiro. Eram as mudas supersônicas, assim como os sons são supersônicos, as mudas também o são. Elas são vistas e captadas apenas por olhares atenciosos que nem mesmo as outras mudas veem. A mulher que me negou como seu amor, quando éramos adolescentes agora era a minha esposa há tantos anos. E não vimos o tempo passar. Até que vi esta maçã do meu lado. Junto do cinzeiro. A maçã que me reconsertou. Que me fez viver novamente, a maçã que era apenas uma maçã. A maçã de casca retumbante e em desacordo com outras maçãs. A maçã escondida e disfarçada de maçã para que ninguém mais, além de mim a visse como ela realmente era: uma maçã e não um mero alimento.
     O lanche de Clara. O sabor de Clara, de pele levemente bronzeada e de uma beleza peculiar. O sabor da maçã enrustida. O sabor de Clara enrustida na maçã. O sabor de Clara e da maçã no mesmo pomo de mármore vermelho chamativo, do mesmo pomo de atração do mim por ela. Do mesmo pomo. Das petúnias rosa que nada me lembram os trópicos. Até que, por fim, Clara concluiu e limpou as mãos sujas de barro na blusa de flanela xadrez. E o vermelho da maçã se confundia com o vermelho do xadrez da blusa de minha mulher. Ela parecia orar no chão. Estava de joelhos assim como a maçã me implorava por sua vida vegetal.
     E Clara implorava pela maçã por si própria. Era o próprio desespero do próprio vermelho inconformado da maçã. A desenvoltura da maçã. O arder da maçã como um assoalho de madeira. Aqueles olhos azuis muito excelsos. Aqueles olhos de borboleta, tão azuis que eram contaminados por uma incrível aura cristalina do nada. Amava a cada dia a Clara. E aqueles olhos e aqueles fios de cabelo louro e desgrenhados. E tudo. Amava ela ao todo. E o cheiro de terra e o cheiro de cigarro que o meu estava se apagando no cinzeiro.  A fumaça subia ao azul do céu. Ao azul sinfônico e desacreditado do céu. Porque o azul é desacreditado como o vinho. E tem os demônios jubilosos desfilando pelo ar do monumento morto e jogado num terreno para a carne ser consumida pelo decompositor que nem sabe o nome do corpo que come. Assim como a maçã vai ser consumida pelo consumidor que vai ser consumido. E nada mais. Tudo termina num nada que foi começado num nada.
     Enquanto Clara mastigava a maçã, seu olhar foi-me convidativo para entrarmos em casa. Joguei o cigarro entre a folhagem para que ela não notasse e a segui segurando em seu ombro e beijei sua nuca. O silêncio já nos era tão terno, tão apaixonante que as palavras já nos faltavam. Assim como me faltava àquela maçã. Não. Aquela maçã me fazia mais falta que as palavras. Porque de Clara eu podia esperar os gestos, os sentimentos; da maçã, não.
     Dentro da casa, no quarto, em minhas leituras, eu podia ver Clara se despir para o banho para livrar-se dos grãos de terra em seu corpo bronzeado e lindo. Assim como o ar é feito de moléculas, o amor também delas é feito. Tem segmentos de moléculas de amor naquele banho. Podia escutar as gotículas de água batendo e escorrendo pelas curvas do seu corpo.
     A água que tanto fora inocente com Clara e que tanto a desgastou de menina inocente à mulher que hoje é. A mulher de carícias doces e cara de francesa que tinha. Acendi meu abajur contra o plástico branco onde ela tomava banho, e a luz projetada me fazia ver a sombra e as sinuosidades do seu corpo. O ardor com que tomava banho. O silêncio que ela fazia às águas. O silêncio. A maçã, da cozinha, que trouxe para o meu lado, a companhia do pomo enquanto estava só. Enquanto apenas via a sombra do meu amor.
     Quando ela saiu nua com o corpo ainda molhado, a desejei ardentemente e pus em meu colo a maçã desorientada. O vapor de água contra a luz do banheiro, a toalha felpuda que ela esfregava na pele; secando a umidade do corpo. E as moléculas da umidade do corpo. A umidade nos azulejos do banheiro. A umidade. A umidade é o enfraquecimento, ela é luz do farol das pirâmides. Assim seca, Clara vestiu um longo vestido alvo, a peça se encaixava lindamente em seu corpo bronzeado e punha toda a sua beleza em evidência. Os movimentos dela assim que saiu do banheiro e veio em minha direção pareciam sincronizados assim como o alfinete é sincronizado ao choro dos bebês na maternidade. Ela sentou no braço da poltrona do nosso quarto: um riso malicioso e segurei minha maçã com força, numa mão e a mão de Clara com a outra. Beijei-a fortemente na boca. É como se beija o ato do choro de uma maçã. A saliva quente tem de encostar-se à maçã. E deformá-la ao seu gosto. É imbuí-la ao seu encontro catastrófico e sem recurso.
     O amor ao corpo de Clara vestido no vestido branco, assim como o corpo da maçã se envolve no ar e se comprime ao experimento simples de viver. A sua graça ao vestido era atribuída pelo branco ao seu tom de pele. Ao seu desejo de pele. Ao seu desejo. Ao meu desejo. Ao meu medo. Medo de perdê-la. Fomos em direção à cozinha. Vi que Clara queria me fazer algo especial, preparar-me uma janta indescritível e à francesa. Olhei pela janela e via a dura e branca lua no céu negro francês. A cor da Lua era a cor do vestido de minha mulher. Era a cor. Era a cor da camisa que eu vestia. Dum branco gelo, totalmente discreto como me agradava. E segurei com forças a minha maçã. Enxuguei o suor da testa, aquela noite seria quente; seria a nossa noite. Os dedos lindos e pequenos dela cortarem algumas folhas verdes e ela espalhava na saladeira tudo de forma rítmica assim como Deus é rítmico. Deus. E, ao temperar com o amarelo limão siciliano, algumas gotas ficaram em seus dedos que ela lambeu sensualmente olhando para mim. Os cabelos ajuntados num coque, como um pomo, um pomo dourado. E numa delicadeza comum a ela. Ao nosso casamento. Ao nosso amor. Comum ao incomum. No sul da França, jantamos. Eu, Clara e a maçã ao lado do meu prato. E quase nada conversamos. Na verdade, foi isso que tanto almejamos ao vir para o interior, numa casa de campo. Que as palavras fossem desprezíveis. E que os sentimentos prevalecessem. Jantamos docemente. Sim, trocamos algumas palavras afetuosas e a maçã nos observava incólume ao nosso amor.  Desprezando nosso desejo, mendigando o silêncio preciso de antes. As controvérsias do nosso silêncio. Bebemos o que vinho que busquei na adega e era tão especial: um Bordeaux antigo, mas com ares novos. Um vinho adolescente e sóbrio sobre as palhas e jornal do inverno cotidiano. A razão do cotidiano. A indelével razão. A razão branca e nítida como aquela lua inocente e grande no céu. A razão inconformada consigo mesma, inconformada como é o trago do vinho romântico que bebemos. O vinho, em verdade, não foi bebido. Ele foi cultuado por nós. O vinho. Era uma entidade antiga que gerava respeito. A bebida agnóstica dos deuses desprovidos de Deus. A bebida que evaporava. Um sangue roxo e Clara. A indecifrável Clara. Dezoito anos juntos e nem se quer a morte das charadas, o porquê do seu sorriso misterioso. Porque o sorriso é mistério revelado por alguns ociosos, porque o sorriso é não-deus. É sorriso. As poucas palavras não faziam parte. Os não dizeres desprezíveis. Selecionados de dizeres permanentes e desprevenidos. Era Clara, era a falta de prédios. Era Clara. Era o vinho. Era a palmeira desfolhada e a Lua atrás. Tudo rezava, tudo tudo. Uma morte calma da tarde e o começo da noite. E a salada apetitosa. E o limão siciliano. O limão é um mago. O fruto do prazer e da discórdia assim como a maçã. E a maçã. Eu combinado com a maçã. Ela vermelha, nutrida; consciente; aparente e sem noção de mundo. Sem perdão. Era a maçã. Ela Clara. Era a casa pintada de branco e com janelas azuis.
     Levantei meu maço de cigarros, mas decidi não acender algum. Porque o cigarro é a lei. E o cigarro é o produto do superior. É o produto do riso e do medo. Porque é cigarro.
     De modo que o papel absorve água, absorvo Clara. Inocência e indecência, incoerência até o nada mais. Até não poder dizer. Até questionar. Até. É inédito o nosso amor... frase lânguida. Choro perverso. Inconsistente. E a secura do ar me retém no Deus supersônico que nesse momento me é a maçã. Desejo a maçã como  não desejo Deus e Clara. Deus que é Deus. O retumbante Deus. Infelicidade. E o último gole de vinho se foi... bebemos juntos; se fôssemos sincronizados, não o faríamos. Mas nosso amor nos poupou. E Clara no seu vestido.E a maçã na sua casca e Deus no seu esconderijo onde impera a sua discrepância. A discrepância de morder o pomo e não sentir nada. O ar vazio do pomo. A indelicadeza. O torpor. A noite.
     Clara fumou um cigarro, tentando ficar longe de mim. Mas o cheiro me vinha como um exército de anjos de palha, de palhas, de humanos. Segurava o cigarro com imponência e a fumaça subia vagarosa. E segurei inteiramente a maçã, como quem segura a Deus. E a olhei de novo. E cada vez que, olhava a mulher se parecia mais com ninguém que conhecia e minha paixão ia aumentando, proporcional aumentava a provocação. A intensidade. E tinha medo de envelhecer para ela. E tinha medo. E tinha medo de me ser para ela, no meio do nada francês. Embaixo da lua francesa. Da lua. A supremacia da Lua francesa. E Clara. E ela. E eu. Vi os olhares estafados dela, as flores plantadas lhe cansaram. Assim como Deus se cansou no sétimo dia, o humano se cansa todo dia. Seu olhar exaurido e suave. Mandei-a dormir. Ela não recusou a proposta. Disse-lhe que eu iria depois, que ainda não estava cansado. Nem uma linha escrevera naquele dia. O cansaço pela escrita era pior que o físico. Era o cansaço pela maçã. Era o riso pela maçã. Era a defesa da maçã. Clara se despiu e deitou na cama. Eu a aconcheguei. Pus os lençóis por cima dela, apaguei as luzes e saí do quarto. Os meus passos eram leves. O seu sono era leve igual a Deus. Sempre achei que Deus fosse tão leve e tão discreto que a humanidade seria incapaz de escutá-lo. Que a humanidade é surda? Não, que ela finge não escutar. A maçã finge não escutar, tudo finge não escutar. E o não escutar é um hábito, é uma crença. É não escutar.
     E eu escutava a respiração de Clara dormindo. Segurava a maçã com seu caráter desmerecido. Com sua alma imprópria. Parecia-se com um anjo dormindo: com os grandes e azuis olhos fechados. E o corpo, e o corpo somente respirando. Quando se dorme, se fica surdo. Quando se morre se fica surdo. E no escutar Clara dormindo me senti surdo dos átomos. Até que parou em frente à minha casa uma grande Mercedes-Benz amarela-creme. Era imponente e grandiosa. A buzina tocou e uma luz forte do farol entrou justamente na sala onde eu estava lendo. Aquela luz me dizia algo. Larguei violentamente a maçã e ajuntei algumas coisas minhas que alguém viera me receber. Fui ao quarto de Clara e senti remorso, mas tinha medo de vê-la envelhecer. Assim como o ouro também envelhece e vai morrendo aos poucos. A morte é a surdez. É a perdição do humanismo.
     Abri a porta do carro e nada me surpreendeu.
     - Françoise? – ela vestia uma jaqueta de couro caramelo um pouco mais escura que a cor do carro e um lenço de seda laranja no pescoço.
     - Entre logo!
     Relutei. Meus olhos se condensaram lágrimas. Senti o tato de Clara. Entrei no carro. Beijei Françoise fortemente na boca. A francesa ligou o motor e o veículo entrou em movimento. Foi se desleixando. E Françoise me olhava com imensa pressa. Virei e vi a casa alva de Clara com as janelas azuis. Passei as mãos nos cabelos da francesa. Aqueles cabelos revoltos e desgrenhados como os de Clara. O carro Mercedes começava a se movimentar. E eu olhava a casa de Clara agora.
     - Eu te amo.
     - Eu também, Françoise.
     - Sei que não.
     - Amo sim.
     - Chega de frescuras!
     - Sim, chega! – falei com uma lágrima escorrendo rosto abaixo. Olhei o lenço de Françoise de fundo alaranjado com limões sicilianos estampados e até esqueci de minha maçã. Eu estava surdo como a maçã e como Deus. Surdo como algo. Beijei novamente a francesa e tentei me esquecer do rosto de Clara. É como esquecer Deus. Dei ainda mais um beijo delicioso em Françoise e acendi um cigarro, aquele provavelmente seria o último.

19 – 06 - 2012

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