quinta-feira, 30 de agosto de 2012

A PERNA COBERTA




   Ela se ajoelhou diante do pai. Não falou nenhuma palavra. Apenas olhou o homem fixamente. A tristeza e um certo momento de revolta... Parecia que ela carregava uma cruz que o pai desaprovava. Ele vestia um terno cinza e tinha a barba estupidamente feita. Esquecera de alguns fios. Havia um certo relaxamento. Uma conduta estranha. E o rosto cheio de rugas da velhice. E, de fato, o homem estava velho. Fumava um cigarro e olhava para moça com desdém. Ia comprimindo os lábios. Até que ela não aguentou a pôs-se a chorar. Naquele momento, a tarde era fortemente ensolarada. Era coberta por uma intensa luminosidade. Uma força que fazia os dois discutirem de olhos fechados, ou quase fechados. Semicerrados.
    O calor da tarde entrava pela casa. Ele suava e se enxugava constantemente com um lenço. Causava certo nervosismo na filha. Vez por outra, ele tirava o pano do bolso e passava nos lobos da cabeça suados. E se remordia pensando e olhando para a filha, como se tivesse uma visão interna. Como se não soubesse que a filha estava apaixonada. Na verdade, esse era o seu medo... a filha apaixonada pelo homem estranho da cidade. Quem diria? O corpo era vestido do terno cinza que tinha manchas cinza-escuro do suor. Coçava a barba. A filha não se ajoelhava mais. Viu que de nada adiantava. O pai não lhe dava ouvidos. Era um homem rude. Não compreendia seus sentimentos: nem o pai os da filha; nem a filha os do pai. E aquela conversa nunca chegaria à vã resposta.
    Ela queria casar. E o pai não aceitava o homem que ela escolheu. Ele era estranho e não foi feito para filha dele. Era o que ele queria falar. Falaria ou não? Não, ele não falaria. Era um homem rude, mas faltava-lhe coragem. Às vezes, sentia uma piedade das pessoas que não pertencia naturalmente a ele. Era algo para si, sobrenatural. Uma inconstância acreditar em si mesmo. Ir se desabafando, em meio à noite com seus soluços. Discutir com os maiores medos. E estar sozinho. A viuvez lhe foi um golpe na nuca... um machucado que não sararia. Mas ela não fazia falta... sua companhia era única coisa que lhe faltava. A velha já era fria sexualmente falando e não fazia a menor diferença na cama. Porém o costume com um corpo a mais, um calor a mais nas noites frias... sua filha tinha que arranjar uma companhia para não morrer sozinha que nem ele. Mas precisava ser uma companhia daquelas? Uma figura quase que caricata? Estava assim, tão desesperada que precisasse arranjar qualquer partido?
    A moça que, no começo, estava num clima de tensão, levantou-se de onde estava e se serviu de um cálice de licor. Ofereceu ao pai que, obviamente, recusou. O clima estava horrível, mas ela não revelou. Bebeu em largos goles o absinto, recompondo-se na cadeira. Cruzou as pernas e olhou diretamente para o pai:
    - Por que não?
    O pai enxugou a tez com o lenço e abaixou a cabeça. Tirando um cabelo que estava solto em sua cabeça. Pigarreou, mas não sabia o que dizer. Levantou-se, ajuntou uma moeda caída no chão da sala e então se serviu de uma dose de licor.
    - Por quê?
    - Sim, por quê?
    Ela olhou-o firmemente. Ele, por sua vez, deu uma risada alta. Fechou os olhos para sorrir e enxugou o buço desta vez. Tirou a revista de cima da poltrona e sentou no lugar dela.
    - Você que vou deixar minha filha casar com um aleijado? Que nem mesmo pode trabalhar e prover o sustento da família- riu-se de novo.
    A jovem se calou. Confirmou que a vergonha dele se acabara. Ele iria falar... O pai se serviu de oito licores. Estava começando a se embriagar. As palavras já eram desconexas. A filha nada entedia o que ele dizia. No décimo absinto, ele estava de cócoras caminhando pelo tapete da sala. O suor escorria-lhe pela fronte suada. Tinha delírios e chamava pela mulher morta.
    - Tudo isso, por quê? Porque meu futuro genro não tem uma perna. Ele é um inválido, meu Deus. Não consegue nem caminha por si. Minha filha vai virar escrava dele. Vai ter de carregá-lo. Que vergonha, meu Deus! Que vergonha!
    A filha viu a vizinha passando pela estrada. Convidou-a para entrar, a outra moça entra envergonhada. A filha puxa a moça, abraça e dá-lhe um longo e demorado beijo na boca. Param para respirar e se beijam novamente. Desta vez, de forma mais profunda e mais demorada. As duas se entreolharam. As carícias no rosto, as passadas de mão...
    - Minha filha é um sapatão desgraçado! Largou um aleijado inútil para se agarrar com a vizinha lésbica!
    As duas se beijaram de língua, se abraçaram...
    - Vem, vamos passar um café. Quero te contar uma porção de coisas. Deram-se as mãos e foram. O velho enxugou a fronte, teve um ataque de tosse e se serviu de mais uma dose de licor. Tremia veementemente... aquele dia, definitivamente estava quente e agonizante.

30 de agosto de 2012

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