sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

SEMBLANTE (Parte 2)

... Quando comi a casca da maçã esqueci que tinha de oferecer um pedaço a um rapaz que estava escondido junto comigo. Ele olhava a maçã como se fosse uma atrocidade de guerra. A fome não permitia que fosse racional; pensei por alguns instantes que ele fosse se lançar sobre mim. Não o fez, mas conseguiu me intimidar. Fiquei em silêncio, olhando-o arregalado. Deveria ter uns quinze anos, mas aparentava menos devido à fraqueza e à palidez. Ele parecia ser envolvido por um fino papel branco. Uma brancura nociva, uma brancura insalubre. Quiçá a criatura mais alva que tivesse visto. Dei-lhe um pedaço de maçã: ele comeu saboreando. Mastigava com efervescência, ia diluindo a maçã com a saliva.
   Senti que a fome lhe devorava, e ele devorava aquilo, por sua vez. Deslocava a mandíbula (igual a mim) para sentir o sabor da fruta.
   Aquela fruta mística. Aquilo que devorava a fome que devorava, os civis de uma guerra por exemplo. Íamos ser bombardeados a qualquer instante. E não dispúnhamos dum espaço seguros para permanecer. Eu sentia a morte soprando em meu ouvido.Acendi outra vela, pus num canto e comecei a observar sua cera. Aproximei um pão velho que deixei torrado num instante.
   Escutei um ruído de motores se aproximando. Não faltava muito para minha maçã ser digerida. O adolescente saiu correndo do esconderijo e eu não o vi mais. Os motores vinham se aproximando... E os cuturnos também. Apaguei minha vela e permanecia estático em silência absoluto. Fui escutando aquele som... Senti a breve textura daquela maçã: ela me envolveu numa espécie de frenesi, fui sentindo o calor e o prazer daquele pomo... 

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