sábado, 10 de dezembro de 2011

SEMBLANTE (Parte 3)

... e os cuturnos caminhavam incansáveis pelas sobras de estradas. No profundo breu, pude sentir o formato de tudo, desde o meu corpo até minha linfa até meu coração tresloucado e apavorado com tudo aquilo. A escuridão me apavorava quando criança... Agora, ela e a maçã eram as minhas fiéis companheiras. Estava duas semanas naquele abrigo, onde comi apenas maçãs e vivi na escuridão. Tinha um regime diferente. A fome não escolhia maçãs ou pães secos ou tocos de velas. E a fome foi evoluindo até não ter mais maçãs ou nada disso. Tudo foi escasseando e o bombardeio ia vindo em minha direção. Sentia o ardor, a força e a potência daquele pelotão. Ele era imponente e vinha amassando todas as maçãs e tocos de vela do caminho. Ia mastigando o asfalto e remoendo a carne humana. Não havia poeira. havia umidade. Era uma molhadura que entranhava nos ossos. Pus envolta de mim um plástico para não me molhar tanto. Aquela lama do meu abrigo estava fétida. Tinha um cheiro horrível e uma cor estranha.
   É, lá vinham ele... Podia imaginar as fardas alinhadas, as escopetas numa forma de linha. Sacudiam a estrada. Quando chegaram em cima do meu abrigo... Eu saí, peguei a última maçã e fui em direção a eles. Olhei friamente nos olhos do comandante. Ele me visualizou de cima-abaixo e viu minha condição de miséria.
   Estiquei a maçã para o alto e fiz questão de mostrar a eles do que estava vivendo e como vivia. Ainda não tinha chegado o inverno e essa foi minha sorte. O modo como me olhou o exército inimigo, a pena que eles sentiram de mim acho que nunca aconteceu algo parecido numa guerra. Nem mesmo os nazistas tiveram pena dos civis, quiçá dos inimigos.
   O comandante continuava a me examinar cuidadosmente. Ele não sabia o que fazer. Fiz o gesto para que atirassem em mim, o comandante negou. Fiz, então, o gesto para que me atropelassem, de forma alguma: nem se movimentaram. Eles sabiam que minha morte seria lenta e dolorosa: de fome e de frio. Seguiram em frente e não encostaram um dedo, se quer, em mim.

Escrito a 14 de julho de 2011

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